segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

A VULNERABILIDADE SOCIOECONÔMICA E O TRÁFICO HUMANO


Gilberto Simplício[i]


A Campanha da Fraternidade de 2014, que traz a temática do tráfico humano para o centro do debate, nos apresenta no seu Texto-Base, logo no início da primeira parte, a ideia dessa prática como um “crime que atenta contra a dignidade humana”[ii] porque oprime e escraviza. O Texto-Base também nos mostra os principais alvos fáceis desses criminosos e traficantes: os que estão fragilizados por sua condição socioeconômica.  Ao apresentar as principais modalidades do tráfico humano (os tráficos para a exploração do trabalho, para a exploração sexual, extração de órgãos e de crianças e adolescentes) entendemos quem são esses alvos.
É dentro do contexto dessa fragilidade que é resultado de uma vulnerabilidade socioeconômica, no nosso caso, da contradição da sociedade capitalista fundamentada nesse momento na hegemonia do mercado, que queremos refletir nesse texto.
Muitos pensam que para atacar qualquer tipo de tráfico, a solução estaria na repressão a esse crime, mas se não combatermos aquilo que fomenta o tráfico, não adianta nenhum tipo de prática repressiva. Se não houver possibilidade de amenizarmos essa vulnerabilidade socioeconômica, sempre haverá pessoas que serão presas fáceis para esses grupos criminosos.
As populações susceptíveis às vulnerabilidades socioeconômicas habitam principalmente as periferias das cidades ou as zonas rurais, cuja situação clama por grandes demandas de políticas públicas. Essa situação de risco em que vive parcela da nossa população faz com que essa se torne refém de políticas sociais das três esferas de governos: municipal, estadual e federal.  Mas, apesar de ter claro que toda política social está diretamente ligada ou dependente de políticas econômicas globais, queremos nos deter diretamente no debate de políticas sociais que têm como referência os grupos sociais vulneráveis nas cidades, pois nossas ações estarão diretamente relacionadas aos nossos municípios.
Os diversos problemas sociais que atingem as populações carentes das nossas cidades estão relacionados aos projetos políticos e econômicos excludentes, em que a cidadania é negada não por não terem direitos (estão nas leis), mas por estarem fora do centro dos interesses dos planejamentos econômicos e políticos dos governos. Isso fica claro quando analisamos a importância de secretarias que desenvolvem diretamente as políticas sociais junto às populações periféricas. A secretaria de ação social ou de assistência e promoção social, dependendo da cidade, tem o contato direto com essa população, e, ao mesmo tempo, vive uma situação contraditória dentro de vários governos municipais. É a secretaria que se depara com os diversos problemas que atingem essas populações, mas é uma secretaria secundária (em nível de importância) dentro dos governos municipais. É uma secretaria que tem uma relevância política quando se relaciona ao processo eleitoral, mas que não faz parte do eixo central de decisões dos governos. Historicamente (fortalecidos pelo patriarcalismo e por políticas clientelistas) ela sempre foi vista como a secretaria da “primeira dama”. Espaço de “caridade” e controle social, e nunca um espaço de formulações de políticas públicas e de desenvolvimento estratégicos. 
Mesmo após a Constituição de 1988, em que conquistas na área social foram significativas, a cultura política não mudou. A utilização clientelista permaneceu nas entranhas do poder municipal. Apesar das lutas e conquistas dos novos instrumentos de participação e controle público, ainda assim, as secretarias de assistências sociais não conseguiram em muitos lugares se imporem enquanto espaço político estratégico nas formulações dos programas de governos. Os profissionais dessas áreas ficam, muitas vezes, de pires nas mãos, reféns da centralização das decisões políticas, nas mãos de pessoas que não têm o contato direto com as populações em situação de vulnerabilidade social e com isso sofrem com a contradição gerada dentro dos próprios poderes municipais: tem que dar assistência para populações que sofrem com problemas gerados por políticas (ou falta de políticas) de outros setores dos governos municipais. Ou seja, sendo “bombeiro do próprio incêndio”.
Dentro desse contexto político, importa dar valor estratégico a essas secretarias que lidam diretamente com a população mais carente, mudar o caráter de gestão municipal, onde uma secretaria possa ir além de ser apenas gestora de programas sociais federais e passe a ser formuladora de políticas públicas locais. Isso, logicamente, mexe com os interesses que dominam os projetos de desenvolvimento de muitas cidades, principalmente com o mercado imobiliário, que domina hoje os planejamentos urbanos locais, independentemente do tamanho da cidade. E aqui entra outra contradição, atacar a vulnerabilidade socioeconômica é pensar sobre a questão da moradia.  As más condições de moradias é, sem dúvida nenhuma, um dos principais termômetros de riscos sociais, em que a população se torna mais vulnerável às diversas situações de mazelas e violências sociais.  Os projetos de urbanização, dentro da lógica do capital, vendem uma ideia de inclusão, em que o desenvolvimento é para todos e o espaço melhora para ser consumido por todos. Cria uma visão de cidadania que integra, mas na verdade estamos vendo a construção de um fetiche da igualdade, ou o que alguns chamam de invisibilidade da desigualdade. Isso faz com que a vulnerabilidade aumente no meio dessa população, já que a desigualdade é provocada também pelo tipo de projeto que domina as realidades locais. Por isso, reafirmamos a necessidade de ter no centro das formulações políticas e planejamentos das gestões municipais, secretarias que sempre estiveram nas periferias do poder. São importantes aqueles que estão na ponta, no contato direto com as demandas sociais, sejam também atores nas formulações e nos planejamentos governamentais.
Mas se a reestrutura do processo de Planejamento estratégico das ações governamentais é importante, isso só tem valor com o fortalecimento da sociedade civil no que tange à organização dos movimentos sociais e das vias de participação política dessas populações periféricas. Se a vulnerabilidade está diretamente relacionada ao não atendimento às demandas sociais das comunidades das periferias dos municípios, a luta social para a mudança dessa situação passa a ser urgente. A Campanha da Fraternidade passa a ter esse papel também, qual seja, levar para as diversas instâncias sociais e políticas o debate sobre o Trafico Humano, levando a própria sociedade à responsabilidade de lutar contra as situações que possibilitam a existência de pessoas em risco de viver tal situação.
As Igrejas que atuam diretamente com essas populações, através das suas instituições, e principalmente as pastorais sociais, tornam-se sujeitos políticos importantes para dar visibilidade a essa desigualdade social e atuarem de forma profética na denúncia de tais situações e no engajamento para combater as causas que fazem existir esses crimes e no atendimento pastoral às vitimas do tráfico de seres humanos (crianças, jovens, mulheres e trabalhadores)
Sendo assim, esperamos que se possa aprofundar cada vez mais, dentro de nossas comunidades e organizações eclesiais essa temática e que se busque ações concretas para a transformação de uma realidade que vai contra a dignidade da pessoa e contrário ao projeto de Deus, que somos chamados a participar de sua construção enquanto filhos e filhas do Deus da Vida e da História.  



[i]  Professor, graduado em Ciências Sociais pela UFF,  assessor da Cáritas Diocesana de Valença-RJ e membro do Movimento Fé e Política de Três Rios.
[ii] Texto Base . CF 2014 – Tema Fraternidade e Tráfico Humano. Brasília, Edições CNBB  2013 pag.7.

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