quinta-feira, 19 de agosto de 2021

A EDUCAÇÃO POPULAR E A DESCONSTRUÇÃO IDEOLÓGICA


 

A EDUCAÇÃO POPULAR E A DESCONSTRUÇÃO IDEOLÓGICA[1]

Gilberto Simplício[2]

 

 

Livre como posso

Neste mundo de prisões

Desde os tempos dos tumbeiros

Até hoje os camburões.

 

Ontem presos em correntes

Longe a gente, longe a terra.

Hoje migro em suas guerras

Nas algemas de indigentes

 

Liberdade é a luta

De um povo sofredor

Ela nunca foi presente

De uma cor para outra cor.

 

Teu açoite não deixou

Cicatriz que não se trate.

Berimbau curou as marcas

No batuque do atabaque.

 

Com esse ritmo, todos

Nós vamos dançando.

Buscando a liberdade

Não demora está chegando.[3]

 

Em 1988, quando se completava os 100 anos da Lei Áurea, da Abolição da Escravatura no Brasil, participei como um dos autores, da apresentação de uma canção em um Festival de Música temático promovido pela Pastoral de Juventude, CEB’s e pela Pastoral do Negro de Sapucaia, interior do estado do Rio de Janeiro.  O festival fazia parte de um conjunto de atividades, como encontros, cursos, seminários, debates, que pastorais, comunidades eclesiais e movimentos sociais da época realizavam com o intuito de criar aquilo que Paulo Freire vai chamar de conscientização,

Na medida em que a condição básica para a conscientização é que seu

agente seja um sujeito, isto é, um ser consciente, a conscientização, como educação, é um processo específico e exclusivamente humano. É como seres humanos que mulheres e homens estão não apenas no mundo, mas com o mundo. Somente homens e mulheres, como seres “abertos”, são capazes de realizar a complexa operação de, simultaneamente, transformando o mundo através de sua ação, captar a realidade e expressá-la por meio de sua linguagem criadora. (FREIRE,1982, p.65)

 

Na década de 1980, vamos ter o nascimento ou crescimento de um leque de movimentos sociais que vão ser chamados de “novos movimentos sociais” que englobam várias lutas específicas: feminista, movimento negro, movimento dos homossexuais, estudantil, ecológico ou seja, de caráter identitários ou de lutas gerais. Ao mesmo tempo, cresce o movimento clássico de caráter classista, que é o movimento sindical, e que foi denominado, naquele momento, o novo sindicalismo, a partir de oposições sindicais contrapondo os sindicatos regulados pelo regime militar, além do crescimento de movimentos comunitários fortalecidos pelas CEB’s (Comunidades Eclesiais de Bases) e por pastorais sociais oriundas da Igreja católica.

Esses Movimentos foram vistos, na ocasião, como novos sujeitos. “No sentido de uma coletividade onde se elabora uma identidade e se organizam práticas através das quais seus membros pretendem defender seus interesses e expressar suas vontades, constituindo-se nessas lutas” .(SADER, 1988, p 55)  A importância da formação política estará  contida nesse processo, isto é, na construção desse sujeito em que as práticas de educação não formal desenvolvidas pelos diversos Movimentos Sociais estavam inseridas na ideia de gerar uma nova consciência, que dariam aos integrantes desse movimentos a capacidade de entender a realidade que o cerca e o processo histórico da sua condição de dominados dentro das contradições sociais e econômicas.

Dentro desse aspecto, podemos entender os diversos Movimentos de consciência negra que na década de 1980, vão estar preocupados em desconstruir a ideia dominante da sociedade brasileira baseada no mito da democracia racial.   Dois acontecimentos se destacaram nesse período. Uma é a mobilização no processo da Constituinte para inserir novos direitos que garantam políticas públicas que incluem a população negra na centralidade da cidadania brasileira. E a segunda seriam os protagonismos no debate sobre os 100 anos de Abolição da Escravatura, que, enquanto para as autoridades era visto como uma data festiva, para os movimentos, era um momento de denúncia sobre as condições de vida da maior parte da população negra. 

Importa é entender que desconstruir todo esse arcabouço ideológico construído em cima do mito das três raças e da democracia racial passa pelo entendimento do que Fanon vai nos apresentar em sua obra Os condenados da Terra, isto é, a ideia que a relação colono e colonizado não termina com o fim da colonização, mas permanece nas relações cotidianas no pós descolonização”, “O colono e o colonizado são velhos conhecidos. Foi o colono que fez e continua a fazer o colonizado. O colono tira a sua verdade, isto é, os seus bens, do sistema colonial” (FANON, 2015 p. 52). A mesma coisa podemos dizer na abolição. Como nos versos da música do início do texto, a situação de exploração e de escravidão continua com outra roupagem. A luta pela libertação continua a ser uma bandeira nos movimentos afrodescendentes, como uma realidade ainda a ser conquistada.

Para isso, faz-se necessário, entender que o processo de alienação do negro em relação ao branco ocorre devido aos resquícios advindos da colonização, ou melhor da escravidão. Nesse sentido, Grada Kilomba (2009) em um dos seus textos, utiliza a máscara da escrava Anastácia como simbologia do silenciamento do povo negro na relação com o processo de colonização imposta pelas nações europeias, cujos países colonizados tiveram sempre a violência como referência de controle sobre essa população.

Os diversos tipos de racismo, que hoje são apresentados em diversos estudos, têm, nessa simbologia, a sua essência. O racismo estrutural e institucional, que se faz presente na organização e nas estruturas das nossas sociedades, como o racismo cotidiano presente em pequenos detalhes, que fere de forma profunda o indivíduo, faz com que o negro se sinta cada vez mais inferior e espelhe no branco a superação da sua condição de “inferioridade”.

Dentro desse aspecto, a linguagem é uma arma profunda de manutenção dessa relação colono / colonizado e teremos, nessa relação, o desenvolvimento de construção de uma ideologia do branqueamento. Por isso é fundamental buscarmos o melhor entendimento do que seja a linguagem para que possamos aprofundar melhor a nossa análise. O linguista dinamarquês Louis Hjelmslev de maneira bem ampla nos diz que

a linguagem é o instrumento graças ao qual o homem modela seu pensamento, seus sentimentos, suas emoções, seus esforços, sua vontade e seus atos, o instrumento graças ao qual ele influencia e é influenciado, a base última e mais profunda da sociedade humana (HJELMSLEV, 1978 p 179).

 

Para o filósofo  russo, Mikhail Bakhtin[4]  a linguagem está em permanente processo de criação e o povo detém um papel primordial nessa ação criativa.  Para o antropólogo Bronislaw Malinóvski, ao estudar povos “primitivos não-civilizados”, a linguagem “jamais foi utilizada apenas como mero instrumento para refletir o pensamento. É antes um modo de ação do que um instrumento de reflexão”.[5]

Nessa perspectiva, Fanon assinala que essa realidade da linguagem é uma forma a mais de fortalecer a desconstrução do negro dentro das novas referências que ele adquire. “Quanto mais assimilar os valores culturais da metrópole, mais o colonizado escapará da sua selva. Quanto mais ele rejeitar sua negridão, seu mato, mais branco será.” (FANON, 2008, p. 34)

A linguagem é um instrumento de ideologia, através da qual há a construção de discursos que fortalecem uma relação de dominação. Sendo a ideologia uma visão de mundo de uma dada classe social, de ideias que uma determinada classe tem do mundo, é impossível desvinculá-la da linguagem. Logo, a cada formação ideológica corresponde uma formação discursiva, que é um conjunto de temas e de figuras que materializa uma dada visão de mundo.

A importância das diversas formas de atividades de conscientização, tem como objetivo, desconstruir todo esse arcabouço que ajuda a manter uma passividade entre a população negra e não reagir as diversas violências dirigidas a essa população.

Como afirma Clóvis Moura, costuma-se dizer que o negro foi um ótimo escravo, no momento que ele produzia e não se levantava com a situação que se encontrava, mas era um péssimo escravo quando se rebelava e buscava se organizar em forma de fugas e em quilombos. E, ao mesmo tempo, é visto como um mau cidadão, que 

          não aceita a discriminação racial, o seu confinamento nas favelas, mocambos e alagados, as restrições que são feitas à sua cor no mercado de trabalho e em muitas instituições, e procura, de uma forma ou de outra, encontrar saída para o impasse através da sua participação em movimentos projetivos? (...) vive nas favelas, nos cortiços, nos mocambos nordestinos e se situa nas mais baixas camadas sociais, como operário não qualificado, doméstica, mendigo, biscateiro, criminoso ou alcoólatra “ (MOURA, 2021, p.29).

 

Ou seja, aquele que não foi integrado, na sua grande maioria à sociedade civil atual como cidadão. Pode-se dizer que essa realidade, onde o preconceito racial é presente e está estruturado na nossa sociedade, se apresenta dentro do contexto do nosso processo histórico autoritário e classista, onde “o aparelho ideológico de dominação da sociedade escravista gerou um pensamento racista que perdura até hoje” [6] (MOURA, 2019 p. 46)

Como pode-se perceber, as lutas dos movimentos sociais frente às diversas formas de preconceitos, tanto identitárias quanto de classes vão ter a formação política, através de uma educação popular, inseridas nas suas estruturas como fundamentais para a desconstrução de uma ideologia dominante que imprime a sua visão hegemônica sobre as vidas e o pensar dessa sociedade excludente.

 

 

Referências Bibliográficas

 

EPSTEIN, Isaac. O signo. Editora Ática, 5ª edição, São Paulo 1997

FANON, Frantz. Os condenados da terra Juiz de Fora Ed. UFJF. 2005

­­­­­­­­­­­­­­_____________. Peles negras, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008.

FREIRE, Paulo. Ação cultural para a liberdade e outros escritos. 8ª edição Rio de Janeiro. Paz e Terra1982

HJELMSLEV, Louis Trolle. Prolegômenos – A uma teoria da linguagem. In Textos Selecionados de Ferdnand De Saussure, Roman Jakoson, Loius Trolle Hjelmslev, Noan Chomsky. Coleção os Pensadores, 2ª ed. São Paulo: Abril Cultural 1978

KILOMBA, Grada. Memórias de Plantação. Episódios de racismo cotidiano Rio de janeiro Ed. Cobogó2009

MOURA, Clovis.  O negro, de bom escravo a mau cidadão? 2ª ed. São Paulo: Editora Dandara, 2021.

MOURA, Clóvis. Sociologia do negro brasileiro. 2ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2019

SADER, Eder. Quando novos personagens entraram em cena. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988

 

 



[1] Ensaio apresentado revisado apresentado a disciplina Pensando Raça, gênero, sexualidade e classe nas políticas públicas  do curso de Maestría Estado, Gobierno y Políticas Públicas pela Faculdade Latina-Americana de Ciências Sociais – Sede Brasil / FLACSO em Agosto de 2021.

[2] Mestrando em Estado, Governo e Políticas Públicas pela FLACSO – Brasil – Turma 2020

[3] Esta letra foi composta por mim Gilberto Simplício em parceria com Emílio Cunha Amorim, que naquele período éramos integrantes da Pastoral de Juventude da cidade de Três Rios, também interior do Rio de Janeiro e que é vizinha da Cidade de Sapucaia

[4] Texto citado por Leandro Konder in A Questão da Ideologia. São Paulo: Cia das Letras, 2003

[5] Citado em Epstein, Isaac. O signo.  Editora Ática , 5ª edição, São Paulo 1997

[6] Clóvis Moura demonstra que essa forma de pensar é recorrente nos estudos de diversos pensadores pós abolição, fortalecendo a ideologia dominante, em que o racismo se desenvolve. Ele dá o exemplo do pensador Oliveira Vianna, que pensa a “Nova” oligarquia esclarecida e branca como construtora exclusiva da nova civilização

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