quinta-feira, 19 de agosto de 2021

A EDUCAÇÃO POPULAR E A DESCONSTRUÇÃO IDEOLÓGICA


 

A EDUCAÇÃO POPULAR E A DESCONSTRUÇÃO IDEOLÓGICA[1]

Gilberto Simplício[2]

 

 

Livre como posso

Neste mundo de prisões

Desde os tempos dos tumbeiros

Até hoje os camburões.

 

Ontem presos em correntes

Longe a gente, longe a terra.

Hoje migro em suas guerras

Nas algemas de indigentes

 

Liberdade é a luta

De um povo sofredor

Ela nunca foi presente

De uma cor para outra cor.

 

Teu açoite não deixou

Cicatriz que não se trate.

Berimbau curou as marcas

No batuque do atabaque.

 

Com esse ritmo, todos

Nós vamos dançando.

Buscando a liberdade

Não demora está chegando.[3]

 

Em 1988, quando se completava os 100 anos da Lei Áurea, da Abolição da Escravatura no Brasil, participei como um dos autores, da apresentação de uma canção em um Festival de Música temático promovido pela Pastoral de Juventude, CEB’s e pela Pastoral do Negro de Sapucaia, interior do estado do Rio de Janeiro.  O festival fazia parte de um conjunto de atividades, como encontros, cursos, seminários, debates, que pastorais, comunidades eclesiais e movimentos sociais da época realizavam com o intuito de criar aquilo que Paulo Freire vai chamar de conscientização,

Na medida em que a condição básica para a conscientização é que seu

agente seja um sujeito, isto é, um ser consciente, a conscientização, como educação, é um processo específico e exclusivamente humano. É como seres humanos que mulheres e homens estão não apenas no mundo, mas com o mundo. Somente homens e mulheres, como seres “abertos”, são capazes de realizar a complexa operação de, simultaneamente, transformando o mundo através de sua ação, captar a realidade e expressá-la por meio de sua linguagem criadora. (FREIRE,1982, p.65)

 

Na década de 1980, vamos ter o nascimento ou crescimento de um leque de movimentos sociais que vão ser chamados de “novos movimentos sociais” que englobam várias lutas específicas: feminista, movimento negro, movimento dos homossexuais, estudantil, ecológico ou seja, de caráter identitários ou de lutas gerais. Ao mesmo tempo, cresce o movimento clássico de caráter classista, que é o movimento sindical, e que foi denominado, naquele momento, o novo sindicalismo, a partir de oposições sindicais contrapondo os sindicatos regulados pelo regime militar, além do crescimento de movimentos comunitários fortalecidos pelas CEB’s (Comunidades Eclesiais de Bases) e por pastorais sociais oriundas da Igreja católica.

Esses Movimentos foram vistos, na ocasião, como novos sujeitos. “No sentido de uma coletividade onde se elabora uma identidade e se organizam práticas através das quais seus membros pretendem defender seus interesses e expressar suas vontades, constituindo-se nessas lutas” .(SADER, 1988, p 55)  A importância da formação política estará  contida nesse processo, isto é, na construção desse sujeito em que as práticas de educação não formal desenvolvidas pelos diversos Movimentos Sociais estavam inseridas na ideia de gerar uma nova consciência, que dariam aos integrantes desse movimentos a capacidade de entender a realidade que o cerca e o processo histórico da sua condição de dominados dentro das contradições sociais e econômicas.

Dentro desse aspecto, podemos entender os diversos Movimentos de consciência negra que na década de 1980, vão estar preocupados em desconstruir a ideia dominante da sociedade brasileira baseada no mito da democracia racial.   Dois acontecimentos se destacaram nesse período. Uma é a mobilização no processo da Constituinte para inserir novos direitos que garantam políticas públicas que incluem a população negra na centralidade da cidadania brasileira. E a segunda seriam os protagonismos no debate sobre os 100 anos de Abolição da Escravatura, que, enquanto para as autoridades era visto como uma data festiva, para os movimentos, era um momento de denúncia sobre as condições de vida da maior parte da população negra. 

Importa é entender que desconstruir todo esse arcabouço ideológico construído em cima do mito das três raças e da democracia racial passa pelo entendimento do que Fanon vai nos apresentar em sua obra Os condenados da Terra, isto é, a ideia que a relação colono e colonizado não termina com o fim da colonização, mas permanece nas relações cotidianas no pós descolonização”, “O colono e o colonizado são velhos conhecidos. Foi o colono que fez e continua a fazer o colonizado. O colono tira a sua verdade, isto é, os seus bens, do sistema colonial” (FANON, 2015 p. 52). A mesma coisa podemos dizer na abolição. Como nos versos da música do início do texto, a situação de exploração e de escravidão continua com outra roupagem. A luta pela libertação continua a ser uma bandeira nos movimentos afrodescendentes, como uma realidade ainda a ser conquistada.

Para isso, faz-se necessário, entender que o processo de alienação do negro em relação ao branco ocorre devido aos resquícios advindos da colonização, ou melhor da escravidão. Nesse sentido, Grada Kilomba (2009) em um dos seus textos, utiliza a máscara da escrava Anastácia como simbologia do silenciamento do povo negro na relação com o processo de colonização imposta pelas nações europeias, cujos países colonizados tiveram sempre a violência como referência de controle sobre essa população.

Os diversos tipos de racismo, que hoje são apresentados em diversos estudos, têm, nessa simbologia, a sua essência. O racismo estrutural e institucional, que se faz presente na organização e nas estruturas das nossas sociedades, como o racismo cotidiano presente em pequenos detalhes, que fere de forma profunda o indivíduo, faz com que o negro se sinta cada vez mais inferior e espelhe no branco a superação da sua condição de “inferioridade”.

Dentro desse aspecto, a linguagem é uma arma profunda de manutenção dessa relação colono / colonizado e teremos, nessa relação, o desenvolvimento de construção de uma ideologia do branqueamento. Por isso é fundamental buscarmos o melhor entendimento do que seja a linguagem para que possamos aprofundar melhor a nossa análise. O linguista dinamarquês Louis Hjelmslev de maneira bem ampla nos diz que

a linguagem é o instrumento graças ao qual o homem modela seu pensamento, seus sentimentos, suas emoções, seus esforços, sua vontade e seus atos, o instrumento graças ao qual ele influencia e é influenciado, a base última e mais profunda da sociedade humana (HJELMSLEV, 1978 p 179).

 

Para o filósofo  russo, Mikhail Bakhtin[4]  a linguagem está em permanente processo de criação e o povo detém um papel primordial nessa ação criativa.  Para o antropólogo Bronislaw Malinóvski, ao estudar povos “primitivos não-civilizados”, a linguagem “jamais foi utilizada apenas como mero instrumento para refletir o pensamento. É antes um modo de ação do que um instrumento de reflexão”.[5]

Nessa perspectiva, Fanon assinala que essa realidade da linguagem é uma forma a mais de fortalecer a desconstrução do negro dentro das novas referências que ele adquire. “Quanto mais assimilar os valores culturais da metrópole, mais o colonizado escapará da sua selva. Quanto mais ele rejeitar sua negridão, seu mato, mais branco será.” (FANON, 2008, p. 34)

A linguagem é um instrumento de ideologia, através da qual há a construção de discursos que fortalecem uma relação de dominação. Sendo a ideologia uma visão de mundo de uma dada classe social, de ideias que uma determinada classe tem do mundo, é impossível desvinculá-la da linguagem. Logo, a cada formação ideológica corresponde uma formação discursiva, que é um conjunto de temas e de figuras que materializa uma dada visão de mundo.

A importância das diversas formas de atividades de conscientização, tem como objetivo, desconstruir todo esse arcabouço que ajuda a manter uma passividade entre a população negra e não reagir as diversas violências dirigidas a essa população.

Como afirma Clóvis Moura, costuma-se dizer que o negro foi um ótimo escravo, no momento que ele produzia e não se levantava com a situação que se encontrava, mas era um péssimo escravo quando se rebelava e buscava se organizar em forma de fugas e em quilombos. E, ao mesmo tempo, é visto como um mau cidadão, que 

          não aceita a discriminação racial, o seu confinamento nas favelas, mocambos e alagados, as restrições que são feitas à sua cor no mercado de trabalho e em muitas instituições, e procura, de uma forma ou de outra, encontrar saída para o impasse através da sua participação em movimentos projetivos? (...) vive nas favelas, nos cortiços, nos mocambos nordestinos e se situa nas mais baixas camadas sociais, como operário não qualificado, doméstica, mendigo, biscateiro, criminoso ou alcoólatra “ (MOURA, 2021, p.29).

 

Ou seja, aquele que não foi integrado, na sua grande maioria à sociedade civil atual como cidadão. Pode-se dizer que essa realidade, onde o preconceito racial é presente e está estruturado na nossa sociedade, se apresenta dentro do contexto do nosso processo histórico autoritário e classista, onde “o aparelho ideológico de dominação da sociedade escravista gerou um pensamento racista que perdura até hoje” [6] (MOURA, 2019 p. 46)

Como pode-se perceber, as lutas dos movimentos sociais frente às diversas formas de preconceitos, tanto identitárias quanto de classes vão ter a formação política, através de uma educação popular, inseridas nas suas estruturas como fundamentais para a desconstrução de uma ideologia dominante que imprime a sua visão hegemônica sobre as vidas e o pensar dessa sociedade excludente.

 

 

Referências Bibliográficas

 

EPSTEIN, Isaac. O signo. Editora Ática, 5ª edição, São Paulo 1997

FANON, Frantz. Os condenados da terra Juiz de Fora Ed. UFJF. 2005

­­­­­­­­­­­­­­_____________. Peles negras, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008.

FREIRE, Paulo. Ação cultural para a liberdade e outros escritos. 8ª edição Rio de Janeiro. Paz e Terra1982

HJELMSLEV, Louis Trolle. Prolegômenos – A uma teoria da linguagem. In Textos Selecionados de Ferdnand De Saussure, Roman Jakoson, Loius Trolle Hjelmslev, Noan Chomsky. Coleção os Pensadores, 2ª ed. São Paulo: Abril Cultural 1978

KILOMBA, Grada. Memórias de Plantação. Episódios de racismo cotidiano Rio de janeiro Ed. Cobogó2009

MOURA, Clovis.  O negro, de bom escravo a mau cidadão? 2ª ed. São Paulo: Editora Dandara, 2021.

MOURA, Clóvis. Sociologia do negro brasileiro. 2ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2019

SADER, Eder. Quando novos personagens entraram em cena. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988

 

 



[1] Ensaio apresentado revisado apresentado a disciplina Pensando Raça, gênero, sexualidade e classe nas políticas públicas  do curso de Maestría Estado, Gobierno y Políticas Públicas pela Faculdade Latina-Americana de Ciências Sociais – Sede Brasil / FLACSO em Agosto de 2021.

[2] Mestrando em Estado, Governo e Políticas Públicas pela FLACSO – Brasil – Turma 2020

[3] Esta letra foi composta por mim Gilberto Simplício em parceria com Emílio Cunha Amorim, que naquele período éramos integrantes da Pastoral de Juventude da cidade de Três Rios, também interior do Rio de Janeiro e que é vizinha da Cidade de Sapucaia

[4] Texto citado por Leandro Konder in A Questão da Ideologia. São Paulo: Cia das Letras, 2003

[5] Citado em Epstein, Isaac. O signo.  Editora Ática , 5ª edição, São Paulo 1997

[6] Clóvis Moura demonstra que essa forma de pensar é recorrente nos estudos de diversos pensadores pós abolição, fortalecendo a ideologia dominante, em que o racismo se desenvolve. Ele dá o exemplo do pensador Oliveira Vianna, que pensa a “Nova” oligarquia esclarecida e branca como construtora exclusiva da nova civilização

domingo, 9 de outubro de 2016

ENTRE SOMBRAS




ENTRE SOMBRAS


Estamos vivendo momentos sombrios em relação às políticas públicas, principalmente em relação à Educação. A onda de conservadorismo impera no Reino dos Homens com a benção do “deus” Mercado. Cada vez se torna mais necessário construir alternativas em nosso meio para que não nos tornemos reféns de um sistema que engessa, através da padronização, as experiências locais de educação pública. A construção de alternativas passa por dois processos fundamentais: não ficar alheios aos embates (nem assumir uma posição de neutralidade) que estão sendo travados a nível nacional e regional; e, criar uma rede de debates, fóruns, reflexões entre os diversos interventores sociais pertencentes às comunidades escolares e à sociedade em geral.
O Congresso Nacional, de tendência cada vez mais conservadora, apoiado por um governo fisiológico e clientelista, cujas políticas são voltadas apenas para o interesse da classe dominante e por uma mídia que dita as políticas a serem implementadas que são voltadas apenas para os interesses internacionais, vem reduzindo de uma forma trágica, os diversos ganhos das classes populares em relação às conquistas sociais, e em especial, as da área de educação, sendo, -  pasmem - apresentadas como privilégios referindo-se a um setor e a uma categoria profissional, como a dos professores. O limite dos investimentos sociais, principalmente Educação e Saúde, a perda da autonomia do pré-sal da Petrobrás, que garantia 75% de investimento em Educação, retirando a possibilidade de o Brasil atingir a meta do Plano Nacional de Educação do investimento de 10% PIB e agora a proposta unilateral, sem nenhum debate e de forma impositiva, de uma reforma do Ensino Médio que muda o caráter e a essência da Educação Básica.

Essas  medidas vão provocar posturas novas em relação à intervenção nas redes públicas de ensino nos municípios e deverão produzir uma reação de governos progressistas que, através de práticas participativas, estimulam a autonomia das escolas e o processo de construção coletiva de intervenção política nas áreas sociais. Os investimentos no salário e na formação dos profissionais da educação vão ser cada vez mais difíceis, pois são pautados pela mentalidade de um  mercado que vê a educação pública como gasto, despesa e nunca como investimento social. E a redução dos custos são - como não poderia deixar de ser - compreendidas como meta a serem reduzidas dentro da lógica do capital.
A valorização dos diversos espaços de participação popular passa a ser uma estratégia de mudança de paradigmas, em uma área em que a ideia de gestão empresarial passará a dominar cada vez mais. Onde o conceito de empreendedorismo vem para se opor ao do processo participativo e democrático, onde a meritocracia ganhará corpo nas relações cada vez mais desiguais e injustas. Onde  ser solidário é um valor apenas pessoal e nunca social. Onde o sucesso é a conquista de uma minoria competente em contraposição da incompetência da maioria (pobres).
As sombras estão expostas, as imagens estão em movimento, as cavernas estão sendo habitadas, mas, que, oxalá, as correntes continuem sendo quebradas _ apesar de tudo o que estamos vivendo - em prol de uma educação que liberta e que emancipa.


Gilberto Simplício Professor – Graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal Fluminense  Assessor do Movimento Fé e Política da Região de Três Rios.

segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

A VULNERABILIDADE SOCIOECONÔMICA E O TRÁFICO HUMANO


Gilberto Simplício[i]


A Campanha da Fraternidade de 2014, que traz a temática do tráfico humano para o centro do debate, nos apresenta no seu Texto-Base, logo no início da primeira parte, a ideia dessa prática como um “crime que atenta contra a dignidade humana”[ii] porque oprime e escraviza. O Texto-Base também nos mostra os principais alvos fáceis desses criminosos e traficantes: os que estão fragilizados por sua condição socioeconômica.  Ao apresentar as principais modalidades do tráfico humano (os tráficos para a exploração do trabalho, para a exploração sexual, extração de órgãos e de crianças e adolescentes) entendemos quem são esses alvos.
É dentro do contexto dessa fragilidade que é resultado de uma vulnerabilidade socioeconômica, no nosso caso, da contradição da sociedade capitalista fundamentada nesse momento na hegemonia do mercado, que queremos refletir nesse texto.
Muitos pensam que para atacar qualquer tipo de tráfico, a solução estaria na repressão a esse crime, mas se não combatermos aquilo que fomenta o tráfico, não adianta nenhum tipo de prática repressiva. Se não houver possibilidade de amenizarmos essa vulnerabilidade socioeconômica, sempre haverá pessoas que serão presas fáceis para esses grupos criminosos.
As populações susceptíveis às vulnerabilidades socioeconômicas habitam principalmente as periferias das cidades ou as zonas rurais, cuja situação clama por grandes demandas de políticas públicas. Essa situação de risco em que vive parcela da nossa população faz com que essa se torne refém de políticas sociais das três esferas de governos: municipal, estadual e federal.  Mas, apesar de ter claro que toda política social está diretamente ligada ou dependente de políticas econômicas globais, queremos nos deter diretamente no debate de políticas sociais que têm como referência os grupos sociais vulneráveis nas cidades, pois nossas ações estarão diretamente relacionadas aos nossos municípios.
Os diversos problemas sociais que atingem as populações carentes das nossas cidades estão relacionados aos projetos políticos e econômicos excludentes, em que a cidadania é negada não por não terem direitos (estão nas leis), mas por estarem fora do centro dos interesses dos planejamentos econômicos e políticos dos governos. Isso fica claro quando analisamos a importância de secretarias que desenvolvem diretamente as políticas sociais junto às populações periféricas. A secretaria de ação social ou de assistência e promoção social, dependendo da cidade, tem o contato direto com essa população, e, ao mesmo tempo, vive uma situação contraditória dentro de vários governos municipais. É a secretaria que se depara com os diversos problemas que atingem essas populações, mas é uma secretaria secundária (em nível de importância) dentro dos governos municipais. É uma secretaria que tem uma relevância política quando se relaciona ao processo eleitoral, mas que não faz parte do eixo central de decisões dos governos. Historicamente (fortalecidos pelo patriarcalismo e por políticas clientelistas) ela sempre foi vista como a secretaria da “primeira dama”. Espaço de “caridade” e controle social, e nunca um espaço de formulações de políticas públicas e de desenvolvimento estratégicos. 
Mesmo após a Constituição de 1988, em que conquistas na área social foram significativas, a cultura política não mudou. A utilização clientelista permaneceu nas entranhas do poder municipal. Apesar das lutas e conquistas dos novos instrumentos de participação e controle público, ainda assim, as secretarias de assistências sociais não conseguiram em muitos lugares se imporem enquanto espaço político estratégico nas formulações dos programas de governos. Os profissionais dessas áreas ficam, muitas vezes, de pires nas mãos, reféns da centralização das decisões políticas, nas mãos de pessoas que não têm o contato direto com as populações em situação de vulnerabilidade social e com isso sofrem com a contradição gerada dentro dos próprios poderes municipais: tem que dar assistência para populações que sofrem com problemas gerados por políticas (ou falta de políticas) de outros setores dos governos municipais. Ou seja, sendo “bombeiro do próprio incêndio”.
Dentro desse contexto político, importa dar valor estratégico a essas secretarias que lidam diretamente com a população mais carente, mudar o caráter de gestão municipal, onde uma secretaria possa ir além de ser apenas gestora de programas sociais federais e passe a ser formuladora de políticas públicas locais. Isso, logicamente, mexe com os interesses que dominam os projetos de desenvolvimento de muitas cidades, principalmente com o mercado imobiliário, que domina hoje os planejamentos urbanos locais, independentemente do tamanho da cidade. E aqui entra outra contradição, atacar a vulnerabilidade socioeconômica é pensar sobre a questão da moradia.  As más condições de moradias é, sem dúvida nenhuma, um dos principais termômetros de riscos sociais, em que a população se torna mais vulnerável às diversas situações de mazelas e violências sociais.  Os projetos de urbanização, dentro da lógica do capital, vendem uma ideia de inclusão, em que o desenvolvimento é para todos e o espaço melhora para ser consumido por todos. Cria uma visão de cidadania que integra, mas na verdade estamos vendo a construção de um fetiche da igualdade, ou o que alguns chamam de invisibilidade da desigualdade. Isso faz com que a vulnerabilidade aumente no meio dessa população, já que a desigualdade é provocada também pelo tipo de projeto que domina as realidades locais. Por isso, reafirmamos a necessidade de ter no centro das formulações políticas e planejamentos das gestões municipais, secretarias que sempre estiveram nas periferias do poder. São importantes aqueles que estão na ponta, no contato direto com as demandas sociais, sejam também atores nas formulações e nos planejamentos governamentais.
Mas se a reestrutura do processo de Planejamento estratégico das ações governamentais é importante, isso só tem valor com o fortalecimento da sociedade civil no que tange à organização dos movimentos sociais e das vias de participação política dessas populações periféricas. Se a vulnerabilidade está diretamente relacionada ao não atendimento às demandas sociais das comunidades das periferias dos municípios, a luta social para a mudança dessa situação passa a ser urgente. A Campanha da Fraternidade passa a ter esse papel também, qual seja, levar para as diversas instâncias sociais e políticas o debate sobre o Trafico Humano, levando a própria sociedade à responsabilidade de lutar contra as situações que possibilitam a existência de pessoas em risco de viver tal situação.
As Igrejas que atuam diretamente com essas populações, através das suas instituições, e principalmente as pastorais sociais, tornam-se sujeitos políticos importantes para dar visibilidade a essa desigualdade social e atuarem de forma profética na denúncia de tais situações e no engajamento para combater as causas que fazem existir esses crimes e no atendimento pastoral às vitimas do tráfico de seres humanos (crianças, jovens, mulheres e trabalhadores)
Sendo assim, esperamos que se possa aprofundar cada vez mais, dentro de nossas comunidades e organizações eclesiais essa temática e que se busque ações concretas para a transformação de uma realidade que vai contra a dignidade da pessoa e contrário ao projeto de Deus, que somos chamados a participar de sua construção enquanto filhos e filhas do Deus da Vida e da História.  



[i]  Professor, graduado em Ciências Sociais pela UFF,  assessor da Cáritas Diocesana de Valença-RJ e membro do Movimento Fé e Política de Três Rios.
[ii] Texto Base . CF 2014 – Tema Fraternidade e Tráfico Humano. Brasília, Edições CNBB  2013 pag.7.

sábado, 12 de março de 2011

Cidade e Meio Ambiente: unidade ou contradição 1

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Uma das grandes características das nossas cidades, está no fato de que elas não foram construídas apenas para gerir o bem estar das pessoas que nelas vivem.  O meio urbano nasce das necessidades e interesses de atores sociais diferentes e,  principalmente, antagônicos.
É muito interessante ouvirmos em diversos discursos políticos a frase: “Temos que lutar pelo interesse da cidade”, como se nela houvesse apenas um único interesse. Essa afirmação tem no seu bojo  um conteúdo ideológico de preservar o interesse  daqueles que a dominam.  E no espaço urbano,  as classes populares tiveram sempre reservadas os piores lugares, aquela que não interessava a elite. O que importa é o interesse do Capital:
Urbanização implica necessariamente investimento no território: mas a urbanização capitalista não tem como fim o uso do solo por seus moradores, e sim a especulação com a terra e a dos imóveis. 1
É dentro dessa contradição urbana que devemos debater as questões ambientais. O manual da campanha da fraternidade da CNBB  desse ano, que tem como tema a fraternidade e a vida do planeta, apresenta estudos feitos pelo IPCC, instituição ligada a ONU :
o aumento da temperatura, ou seja a variação média da terra ocorreu a partir de 1750, período que coincide com a implantação do sistema industrial em muitos países.
fotos temas ecológicos Ora, se hoje falamos em aquecimento global, estamos falando de um desenvolvimento urbano capitalista onde o limite não existe, em que as áreas de ambientes naturais sempre foram vistas como barreiras a serem suplantadas. Os rios , as matas, os morros não fizeram parte da geometria urbana, a não ser quando havia interesse por parte do  capital.  O tipo de consumo desenfreado nos leva a uma poluição atmosférica extraordinária, a um esgotamento da terra, provocados pelas queimadas e pelo uso de agrotóxicos, criando uma situação alarmante.
Se  tivemos as diversas Eras, como a era do capital e do império, atualmente está sendo  retomado o conceito apresentado por E. P. Thompson, para descrever o período da guerra fria,  de era do exterminismo:
Vivemos uma era de exterminismo. Pela primeira vez na história da humanidade, não por efeito de armas nucleares, mas pelo descontrole da produção industrial (o veneno radioativo Plutônio 239 tem um tempo de degradação de 24 mil anos), podemos destruir toda a vida do planeta. Passamos do modo de produção para o modo de destruição. 2
 
Para terminar esse primeiro artigo sobre esse tema, é necessário ter claro que o problema não está na questão do desenvolvimento ou do  não desenvolvimeno urbano, mas  na discussão acerca do  tipo de desenvolvimento que as nossas cidades devem ter,  que espaços devem ser construídos para que não prevaleçam os interesses de uma pequena parcela da sociedade e como esse desenvolvimento não esteja sob o signo do capital, mas em detrimento do  ser humano integrado ao ambiente em que vive e sobrevive como um todo.
Notas:
1. Silva, Itamar Silva eLins, Renata  in Remoções: as palavras e as coisas. Democracia Viva Nº 45  IbaseJulho 2010   Página 10 – Rio de Janeiro
2. Gadoti, Moacir  in Pedagogia da terra: Ecopedagogia e educação sustentável. http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/torres/gadotti.pdf  pesquisado em 12-03-2011.
Gilberto Simplício

domingo, 23 de maio de 2010

Eles ainda são minoria

Estou postando esta reportagem, para iniciarmos um debate sobre a educação e a desigualdade social, a partir daí poderemos refletir o papel da escola como sujeito no processo de transformação social.
Esta reportagem foi retirada do portal IG, http://ultimosegundo.ig.com.br/educacao/eles+ainda+sao+minoria/n1237631624228.html , é importante que as pessoas interessadas nesse tema acessem outros links que estão nessa página que trata também do assunto como:
Racismo permeia as escolas; Mitos e preconceitos; "A escola está em função de uma elite social" e  Ações afirmativas promovem igualdade de disputa.

Uma boa leitura para vocês.

Na escola, na universidade ou nos cargos disputados do mercado de trabalho, os negros aparecem pouco nas estatísticas.

Priscilla Borges, iG Brasília
23/05/2010 08:00

João Batista de Sousa, 57 anos, é quase uma exceção. Ao longo da vida, atingiu lugares inimagináveis pela sua família e pela sociedade onde vivia. Negro, pobre, filho de uma dona de casa e um agricultor, decidiu estudar e mudar a trajetória a que muitos à sua volta o condenavam: seguir os passos do pai.

O mineiro da cidade de Uberaba se tornou um cirurgião especialista em coloproctologia (câncer intestinal), e, hoje, acumula ainda as funções de professor e vice-reitor da Universidade de Brasília (UnB). Sempre bem-humorado, João Batista diz que costuma “não dar ouvidos ao preconceito”, que, segundo ele, o "acompanhou sempre".

Os pais de João não estudaram. O pai frequentou uma escola durante 60 dias apenas. A mãe só foi alfabetizada depois dos 40 anos. Apesar isso, eles incentivaram os filhos a seguir caminhos diferentes. Eles entraram no colégio aos 7 anos. Quem fazia corpo mole ganhava um castigo inusitado: um choque de realidade.



Foto: Marcos Brandão/OBrittoNews


João Batista de Sousa resolveu ser médico depois de um acidente

Para assustar os que não queriam saber de livros, o pai de João os colocava para trabalhar pesado na fazenda, ao lado dos peões. Assim, achava que faria os filhos entenderem que era preciso buscar um futuro melhor. A tática não funcionou com todos. Mas com o vice-reitor da UnB deu certo.

Sempre com boas notas, João teve momentos de dúvida. Chegou a largar a escola por alguns anos. Um acidente de cavalo, no qual quebrou o tornozelo, fez com que mudasse de ideia e começasse a sonhar com o curso mais disputado e cobiçado da cidade. Os cuidados dos médicos o encantaram. Na vizinhança, riam da vontade do menino.

Era impensável que um jovem negro e de família de baixa renda pensasse em dividir um espaço tão privilegiado e tão elitizado quanto um curso de medicina. O ensino superior como um todo ainda é um desafio para a população negra.

Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2008 mostram que, na faixa etária considerada ideal para cursar o ensino superior (entre 18 e 24 anos), 20,5% dos brancos concluíram a graduação, enquanto apenas 7,7% dos negros chegaram lá. Quando se analisa toda a população com mais de 25 anos que conseguiu um diploma de ensino superior, a situação se repete: 14,7% de brancos contra 4,7% de negros alcançaram o feito.

Quando entrou na faculdade, a Federal do Triângulo Mineiro, era possível contar nos dedos quantos negros haviam conseguido o mesmo feito. Eram cinco na época, diz João. Dentro da instituição, situações de preconceito aconteciam constantemente.

Certa vez, um colega médico disse que a faculdade não prestava porque admitia negros. Depois emendou que o esforço do vice-reitor de nada adiantaria: “Ele disse que eu morreria pobre porque pobreza atrai pobreza”.

João teve dois casamentos ao longo da vida, as duas mulheres eram brancas. “O meio em que eu vivia era branco”, admite.

Influência das cotas

O vice-reitor da UnB acredita que os programas de ações afirmativas têm mudado os caminhos da juventude negra. Defende as cotas da instituição que trabalha, mas aposta que será preciso tomar medidas mais radicais para mudar a realidade dos negros no País. “Precisamos de políticas na educação básica que coloquem todos nas mesmas condições de competição”, diz.

Talvez por influência das cotas – que não são obrigatórias, mas já foram adotadas em 91 instituições de educação superior no País – a quantidade de jovens que freqüenta a universidade aumentou nos últimos anos, mas está longe de ser igualitária.

Em 1998, apenas 7,1% da população preta ou parda do País frequentava o ensino superior, enquanto 31,8% dos estudantes brancos estavam nessa fase. Dez anos depois, a taxa de negros na universidade saltou para 28,7%, quatro vezes mais. Entre os estudantes brancos, o crescimento foi menor: 60% deles estudam em algum curso de graduação.

domingo, 21 de fevereiro de 2010

ECONOMIA E VIDA: DA DENÚNCIA AO ANÚNCIO

A Campanha da Fraternidade de 2010, que traz como tema: ECONOMIA E VIDA, e Vocês não podem Servir a Deus e ao Dinheiro (Mt 6,24) como lema, pode ser analisada sob alguns aspectos que nos ajudam a pensar ou repensar caminhos para o desenvolvimento de práticas sociais voltadas para a emancipação social das camadas excluídas da nossa sociedade.

A Campanha da Fraternidade, como sabemos,  é organizada todos os anos pela CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), e tem nas suas comunidades o seu espaço de atuação. Este ano, porém, pela terceira vez, a organização passa a ser feita pelo CONIC (Conselho Nacional das Igrejas Cristãs). Apesar da limitada representação entre as diversas Igrejas Cristãs existentes no Brasil, esse fato reafirma que se é possível o ecumenismo acontecer, certamente isso se dará pela prática social dentro da perspectiva da opção pelos pobres.

O tema desse ano se volta necessariamente para a questão da emancipação social, pensada a partir da crítica à economia neoliberal e buscando alternativas econômicas a partir de outra referência que não seja o acúmulo de capital. Podemos perceber isso no momento em que a palavra Economia é colocada ao lado da palavra Vida. Esse fato leva necessariamente a uma crítica à economia enquanto ciência, o que dá a entender que, dentro da nossa realidade, as políticas econômicas estiveram afastadas das necessidades da maioria da nossa população. Portanto, a Economia não pode ser neutra,  por trás das políticas econômicas há pessoas, vidas, nações que muitas vezes são desconsideradas em prol das necessidades do capital.

Esse tema vem em um momento certo para pensarmos a nossa realidade e buscarmos alternativas acreditando que um novo mundo é possível. A crise econômica em que o mundo foi submerso em 2009 e a tragédia que ocorreu no Haiti (A tragédia natural do terremoto associado à tragédia econômica e política da miséria), estão dentro do contexto dessa economia, onde o capital financeiro e especulativo é o dominante, tendo o mercado como o grande maestro de toda orquestra organizada para fortalecimento do capitalismo globalizado. O Banco Mundial, o FMI e a OMC (Organização Mundial do Comércio), continuam sendo os gestores dos interesses das elites dos países dominantes associados aos interesses internos das elites nacionais dos países periféricos.

O Mercado é colocado como o gestor da felicidade da humanidade, somente a partir dele é que o progresso e a prosperidade têm condições de serem atingidos. Aos poucos se percebe as armadilhas em que todos nós caímos, onde em vez de riqueza e felicidade, surgem a miséria e a infelicidade humana. O "deus" Mercado não põe as suas mãos em prol de todos, mas na proteção daqueles que buscam cada vez mais acumular capital.

O mercado se apresenta como a a história mitológica da mão de Midas, onde Dionísio (o deus do vinho) agradecido ao rei Midas por ter acolhido e protegido seu mestre e pai de criação Sileno, deu a ele o direito de escolher a recompensa que quisesse e Midas pede que tivesse o poder de tudo que tocasse virasse ouro. O seu grande desejo era acumular cada vez mais riquezas e teve como consequência a total infelicidade, pois  além da fome(até os alimentos viraram ouro) acabou fazendo a própria filha também virar ouro . O Mercado é assim também, tudo que ele toca vira lucro: a educação, a saúde, a previdência, o meio ambiente, a política assistencial, a moradia popular, até as demandas provocadas por grandes tragédias naturais. O seu grande objetivo é obter mais lucro, é acumular riquezas, não importanto se com isso irá trazer infelicidades, destruições ambientais, desempregos e miséria.

A Campanha da Fraternidade vem denunciar o projeto Neoliberal que tem nesse Mercado a sua referência, mostrando que é necessário buscar novos referenciais para a construção de uma sociedade nova. E apresenta a Economia Solidária como uma dessas referências. Em outro artigo falaremos um pouco das experiências de Economia Solidária existentes no Brasil.

Gilberto Simplício

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