A EDUCAÇÃO POPULAR
E A DESCONSTRUÇÃO IDEOLÓGICA[1]
Gilberto Simplício[2]
Livre
como posso
Neste
mundo de prisões
Desde os
tempos dos tumbeiros
Até hoje
os camburões.
Ontem
presos em correntes
Longe a
gente, longe a terra.
Hoje
migro em suas guerras
Nas
algemas de indigentes
Liberdade
é a luta
De um
povo sofredor
Ela nunca
foi presente
De uma
cor para outra cor.
Teu
açoite não deixou
Cicatriz
que não se trate.
Berimbau
curou as marcas
No
batuque do atabaque.
Com esse
ritmo, todos
Nós vamos
dançando.
Buscando
a liberdade
Não
demora está chegando.[3]
Em
1988, quando se completava os 100 anos da Lei Áurea, da Abolição da Escravatura
no Brasil, participei como um dos autores, da apresentação de uma canção em um
Festival de Música temático promovido pela Pastoral de Juventude, CEB’s e pela
Pastoral do Negro de Sapucaia, interior do estado do Rio de Janeiro. O festival fazia parte de um conjunto de
atividades, como encontros, cursos, seminários, debates, que pastorais,
comunidades eclesiais e movimentos sociais da época realizavam com o intuito de
criar aquilo que Paulo Freire vai chamar de conscientização,
Na medida em que a condição básica
para a conscientização é que seu
agente seja um sujeito, isto é, um
ser consciente, a conscientização, como educação, é um processo específico e
exclusivamente humano. É como seres humanos que mulheres e homens estão não
apenas no mundo, mas com o mundo. Somente homens e mulheres, como seres
“abertos”, são capazes de realizar a complexa operação de, simultaneamente,
transformando o mundo através de sua ação, captar a realidade e expressá-la por
meio de sua linguagem criadora. (FREIRE,1982, p.65)
Na
década de 1980, vamos ter o nascimento ou crescimento de um leque de movimentos
sociais que vão ser chamados de “novos movimentos sociais” que englobam várias
lutas específicas: feminista, movimento negro, movimento dos homossexuais,
estudantil, ecológico ou seja, de caráter identitários ou de lutas gerais. Ao
mesmo tempo, cresce o movimento clássico de caráter classista, que é o
movimento sindical, e que foi denominado, naquele momento, o novo sindicalismo,
a partir de oposições sindicais contrapondo os sindicatos regulados pelo regime
militar, além do crescimento de movimentos comunitários fortalecidos pelas
CEB’s (Comunidades Eclesiais de Bases) e por pastorais sociais oriundas da
Igreja católica.
Esses
Movimentos foram vistos, na ocasião, como novos sujeitos. “No sentido de uma
coletividade onde se elabora uma identidade e se organizam práticas através das
quais seus membros pretendem defender seus interesses e expressar suas
vontades, constituindo-se nessas lutas” .(SADER, 1988, p 55) A importância da formação política estará contida nesse processo, isto é, na construção
desse sujeito em que as práticas de educação não formal desenvolvidas pelos
diversos Movimentos Sociais estavam inseridas na ideia de gerar uma nova
consciência, que dariam aos integrantes desse movimentos a capacidade de
entender a realidade que o cerca e o processo histórico da sua condição de
dominados dentro das contradições sociais e econômicas.
Dentro
desse aspecto, podemos entender os diversos Movimentos de consciência negra que
na década de 1980, vão estar preocupados em desconstruir a ideia dominante da sociedade
brasileira baseada no mito da democracia racial. Dois acontecimentos se destacaram nesse
período. Uma é a mobilização no processo da Constituinte para inserir novos
direitos que garantam políticas públicas que incluem a população negra na
centralidade da cidadania brasileira. E a segunda seriam os protagonismos no
debate sobre os 100 anos de Abolição da Escravatura, que, enquanto para as
autoridades era visto como uma data festiva, para os movimentos, era um momento
de denúncia sobre as condições de vida da maior parte da população negra.
Importa
é entender que desconstruir todo esse arcabouço ideológico construído em cima
do mito das três raças e da democracia racial passa pelo entendimento do que Fanon
vai nos apresentar em sua obra Os condenados da Terra, isto é, a ideia que a
relação colono e colonizado não termina com o fim da colonização, mas permanece
nas relações cotidianas no pós descolonização”, “O colono e o colonizado são
velhos conhecidos. Foi o colono que fez e continua a fazer o colonizado. O
colono tira a sua verdade, isto é, os seus bens, do sistema colonial” (FANON,
2015 p. 52). A mesma coisa podemos dizer na abolição. Como nos versos da música
do início do texto, a situação de exploração e de escravidão continua com outra
roupagem. A luta pela libertação continua a ser uma bandeira nos movimentos
afrodescendentes, como uma realidade ainda a ser conquistada.
Para
isso, faz-se necessário, entender que o processo de alienação do negro em
relação ao branco ocorre devido aos resquícios advindos da colonização, ou
melhor da escravidão. Nesse sentido, Grada Kilomba (2009) em um dos seus
textos, utiliza a máscara da escrava Anastácia como simbologia do silenciamento
do povo negro na relação com o processo de colonização imposta pelas nações
europeias, cujos países colonizados tiveram sempre a violência como referência
de controle sobre essa população.
Os
diversos tipos de racismo, que hoje são apresentados em diversos estudos, têm,
nessa simbologia, a sua essência. O racismo estrutural e institucional, que se
faz presente na organização e nas estruturas das nossas sociedades, como o
racismo cotidiano presente em pequenos detalhes, que fere de forma profunda o
indivíduo, faz com que o negro se sinta cada vez mais inferior e espelhe no
branco a superação da sua condição de “inferioridade”.
Dentro
desse aspecto, a linguagem é uma arma profunda de manutenção dessa relação
colono / colonizado e teremos, nessa relação, o desenvolvimento de construção
de uma ideologia do branqueamento. Por isso é fundamental buscarmos o melhor
entendimento do que seja a linguagem para que possamos aprofundar melhor a
nossa análise. O linguista dinamarquês Louis Hjelmslev de maneira bem ampla nos
diz que
a
linguagem é o instrumento graças ao qual o homem modela seu pensamento, seus
sentimentos, suas emoções, seus esforços, sua vontade e seus atos, o
instrumento graças ao qual ele influencia e é influenciado, a base última e
mais profunda da sociedade humana (HJELMSLEV, 1978 p 179).
Para
o filósofo russo, Mikhail Bakhtin[4] a linguagem está em permanente processo de
criação e o povo detém um papel primordial nessa ação criativa. Para o antropólogo Bronislaw Malinóvski, ao
estudar povos “primitivos não-civilizados”, a linguagem “jamais foi utilizada
apenas como mero instrumento para refletir o pensamento. É antes um modo de
ação do que um instrumento de reflexão”.[5]
Nessa
perspectiva, Fanon assinala que essa realidade da linguagem é uma forma a mais
de fortalecer a desconstrução do negro dentro das novas referências que ele
adquire. “Quanto mais assimilar os valores culturais da metrópole, mais o
colonizado escapará da sua selva. Quanto mais ele rejeitar sua negridão, seu
mato, mais branco será.” (FANON, 2008, p. 34)
A
linguagem é um instrumento de ideologia, através da qual há a construção de
discursos que fortalecem uma relação de dominação. Sendo a ideologia uma visão
de mundo de uma dada classe social, de ideias que uma determinada classe tem do
mundo, é impossível desvinculá-la da linguagem. Logo, a cada formação
ideológica corresponde uma formação discursiva, que é um conjunto de temas e de
figuras que materializa uma dada visão de mundo.
A
importância das diversas formas de atividades de conscientização, tem como
objetivo, desconstruir todo esse arcabouço que ajuda a manter uma passividade
entre a população negra e não reagir as diversas violências dirigidas a essa
população.
Como
afirma Clóvis Moura, costuma-se dizer que o negro foi um ótimo escravo, no
momento que ele produzia e não se levantava com a situação que se encontrava,
mas era um péssimo escravo quando se rebelava e buscava se organizar em forma
de fugas e em quilombos. E, ao mesmo tempo, é visto como um mau cidadão,
que
não aceita a discriminação racial, o seu confinamento
nas favelas, mocambos e alagados, as restrições que são feitas à sua cor no
mercado de trabalho e em muitas instituições, e procura, de uma forma ou de
outra, encontrar saída para o impasse através da sua participação em movimentos
projetivos? (...) vive nas favelas, nos cortiços, nos mocambos nordestinos e se
situa nas mais baixas camadas sociais, como operário não qualificado,
doméstica, mendigo, biscateiro, criminoso ou alcoólatra “ (MOURA, 2021, p.29).
Ou seja, aquele que não foi integrado, na
sua grande maioria à sociedade civil atual como cidadão. Pode-se dizer que essa
realidade, onde o preconceito racial é presente e está estruturado na nossa
sociedade, se apresenta dentro do contexto do nosso processo histórico
autoritário e classista, onde “o aparelho ideológico de dominação da sociedade
escravista gerou um pensamento racista que perdura até hoje” [6] (MOURA, 2019 p. 46)
Como pode-se perceber, as lutas dos
movimentos sociais frente às diversas formas de preconceitos, tanto
identitárias quanto de classes vão ter a formação política, através de uma
educação popular, inseridas nas suas estruturas como fundamentais para a
desconstrução de uma ideologia dominante que imprime a sua visão hegemônica
sobre as vidas e o pensar dessa sociedade excludente.
Referências Bibliográficas
EPSTEIN, Isaac. O signo. Editora Ática,
5ª edição, São Paulo 1997
FANON, Frantz. Os condenados da terra Juiz
de Fora Ed. UFJF. 2005
_____________. Peles negras,
máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008.
FREIRE, Paulo. Ação cultural para a
liberdade e outros escritos. 8ª edição Rio de Janeiro. Paz e Terra1982
HJELMSLEV, Louis Trolle. Prolegômenos – A uma teoria da
linguagem. In Textos Selecionados de Ferdnand De Saussure, Roman
Jakoson, Loius Trolle Hjelmslev, Noan Chomsky. Coleção os Pensadores, 2ª ed.
São Paulo: Abril Cultural 1978
KILOMBA, Grada. Memórias de Plantação.
Episódios de racismo cotidiano Rio de janeiro Ed. Cobogó2009
MOURA, Clovis.
O negro, de bom escravo a mau cidadão? 2ª ed. São Paulo: Editora
Dandara, 2021.
MOURA, Clóvis. Sociologia do negro
brasileiro. 2ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2019
SADER, Eder. Quando novos personagens
entraram em cena. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988
[1]
Ensaio apresentado revisado apresentado a disciplina Pensando Raça, gênero,
sexualidade e classe nas políticas públicas do curso de Maestría Estado, Gobierno y
Políticas Públicas pela Faculdade Latina-Americana de Ciências Sociais – Sede Brasil
/ FLACSO em Agosto de 2021.
[2]
Mestrando em Estado, Governo e Políticas Públicas pela FLACSO – Brasil – Turma 2020
[3]
Esta letra foi composta por mim Gilberto Simplício em parceria com Emílio Cunha
Amorim, que naquele período éramos integrantes da Pastoral de Juventude da
cidade de Três Rios, também interior do Rio de Janeiro e que é vizinha da
Cidade de Sapucaia
[4] Texto
citado por Leandro Konder in A Questão da Ideologia. São Paulo: Cia das Letras,
2003
[5] Citado
em Epstein, Isaac. O signo. Editora
Ática , 5ª edição, São Paulo 1997
[6] Clóvis
Moura demonstra que essa forma de pensar é recorrente nos estudos de diversos
pensadores pós abolição, fortalecendo a ideologia dominante, em que o racismo
se desenvolve. Ele dá o exemplo do pensador Oliveira Vianna, que pensa a “Nova”
oligarquia esclarecida e branca como construtora exclusiva da nova civilização
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